quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Arvores falsas de plástico





Numa cidade cheia de plantas de borracha, ela comprou um regador. O homem que vendera á ela, era feito de borracha. Comprou o regador para se esquecer, para deixar o passado para trás, esquecer-se de si mesma, livrar-se de si... Era difícil, sabia... O ser humano normalmente livra-se de muitas coisas, mas não de si mesmo, o ‘eu’ de cada um, é o inimigo mais insistente, persistente e obstinado que se pode ter na vida... Mas seus problemas eram maiores...



O regador havia sido comprado para sua arvore chinesa falsa... Falsa como a maior parte de sua vida, como seu trabalho, seus relacionamentos, seus sonhos, aspirações, objetivos... Todos falsos, tudo falso... Como arvores de plástico... Arvores chinesas de plástico, industrializadas. Olhava para as inscrições em alto relevo no regador, ‘MADE IN CHINA’ dizia a inscrição, quase uma condenação, estigma do mundo moderno, capitalismo moderno, nos moldes da globalização e de seus modelos produtivos... Plástico, certamente seria produzido na China... Pensava na China como uma terra onde nada haveria além de fabricas, quilômetros e quilômetros de fabricas, hordas terríveis de trabalhadores, vestidos iguais, educados á assim serem por anos de comunismo que lhe tolheram as almas... Não muito diferentes de nós... Nossas almas foram tolhidas pelo capitalismo, ou pelas ideologias... Ou mesmo pelo cinismo... Não faz diferença, não temos almas. Somos robôs fazendo o trabalho de alguém, ou o nosso, tanto faz.



Todo isso acabava com ela, acabava com sua beleza, que sempre lhe parecera eterna, inesgotável, acabava com sua juventude, sua vontade de continuar vivendo... Na verdade não via mais muito sentido na vida. Desistira de seus sonhos á algum tempo, resignava-se a viver sua vida da mesma maneira todos os dias... A planta de plástico era sua companhia, seu ‘filho’ cuidava dela com todo o esmero possível... Por isso lhe comprara o regador...



Vivia numa casa abandonada, sem luz, nenhum tipo de luz, uma casa no fim da cidade, aquela enorme e opressiva cidade que parecia lhe sufocar e soprar-lhe a vida ao mesmo tempo... Sentia-se mal sempre... Á tempos não sabia o que era o conforto, a felicidade plena... Na verdade, á tempos não sabia o que era a felicidade... Acostumara-se a tristeza, á uma sensação lúgubre e asfixiante que lhe prendia aquela vida vazia uma vida vazia da própria vida, da própria essência desta num sentido mais amplo.



Na casa abandonada, que lhe parecia um reflexo de si mesma, abandonada, triste, envelhecida precocemente em sua aparência e espírito quebrados ela vivia com um homem. Um homem feito de poliestireno. Trincado, queimado... Que queimava seu espírito e alma nas doses de fuga que se auto administrara durante o resto de sua existência vazia, vazia como sua vida junto á ela...



Seu homem de poliestireno fora um dia um cirurgião. Mago transformador de aparências externas vinte e tantos anos antes transformavam a aparência de garotas diferentes dela... Á escolhera por não ser ela uma destas garotas, sua aparência sempre fora a aparência da tristeza que lhe permeara a vida... Sua brancura quase lúgubre, de aparência mortiça... As roupas sempre lhe cobriram como mortalhas... Vestia-se de cetim á feita da dama que ceifa a vida... Sentia-se mal com sua vida, com a maneira como esta se conduzira até ali e parecia arrastar-se como um verme sobre carcaça pútrida do animal sem vida que era a sua existência.



Para seu homem de poliestireno, as cirurgias trouxeram dinheiro, fama, mas nunca a felicidade, era infeliz, sua vida era triste. As cirurgias funcionavam, mas a gravidade sempre vence...e isso acabava com ele. Apaixonara-se por ela, pois ela era diferente, parecia real, tinha um sabor real.Sua garota falsa de plástico.Á chamava assim, ela não gostava disso, mas acabara se acostumando, e encarando isso como uma brincadeira á custa das verdadeiras garotas falsas de plástico.



Naquele dia, o mesmo em que ela adquirira o regador para a arvore falsa de plástico, ela chegou á sua casa, e encontrou seu homem de poliestireno. Como sempre ele estava trincado, queimado, mas naquele dia era diferente... Parecia para ela que o homem estava mais trincado, queimado e rachado do que o normal, do que lhe era habitual.





‘Estou quebrando... ’ Ele disse. ‘É inevitável, estou quebrando. ’Seu cirurgião de plástico já não tinha uma das mãos, ela estava caída no chão, no mesmo chão que á anos estava sujo e empoeirado naquela casa abandonada.



‘O que eu posso fazer?’ Respondeu ela já sem esperança de obter uma resposta dele, mesmo que esta resposta não fizesse sentido algum, ou que pudesse ajudar em alguma coisa.



‘Na verdade não muito... o que você poderia fazer? O que eu poderia fazer? Não podemos fazer mais nada meu amor... Nada... É o nosso destino, estamos ligados á ele, conectados á ele... Isto é o que sou um homem de poliestireno, rachado, quebrado, seco... Nada posso fazer... Não sou nada, além disso... Nada... Se eu pudesse ser o que você queria que eu fosse... Se eu pudesse ser isso todo o tempo... Nossa vida seria perfeita... Mas não é, nunca foi, eu nunca fui perfeito, nunca pude ser, todos alcançaram a perfeição através de minhas mãos, de minhas mãos imperfeitas, tortas plásticas... Minhas mãos, agora rachadas e quebradas, de perfeito poliestireno... Mas a perfeição foi-me negada, tolhida... Nunca serei perfeito, nunca serei o que se esperou de mim, nunca serei o que esperei de mim... Nunca serei mais nada, em pouco tempo, não serei muito mais do que cacos quebradiços de plástico... ’



Ela não se moveu um milímetro... Permaneceu ali, plantada no mesmo lugar, vendo seu homem de poliestireno rachar e se quebrar, a imagem era triste, mas seu coração já era duro, tão ou mais duro do que o coração de plástico de seu homem de plástico...Já não poderia mais ser ferido, não poderia mais ser partido, não iria se rachar, ou se quebrar, mas acima de tudo não iria mais se curar, nunca mais iria se curar...

‘Adeus’ ele disse

‘Adeus’ ela respondeu... Ela se virou e chorou...



Se ao menos ela pudesse ter sido o que ele queria, se ao menos ele pudesse ter sido o que ela queria...

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